Meus contos de Terror

                           Uma noite bárbara

O vento frio cortava meus lábios úmidos. Tão cortante era aquele vento que era de se esperar que eu não gostasse de tê-lo perpassando meu rosto, contudo, aquela sensação me era agradável e me deliciava em sentir os leves estremecimentos que o ar frio me oferecia. Era uma noite gélida, meu andar não era arrastado, mas eu sentia bem o peso das pernas depois de longo tempo me exercitando. Havia caminhado mais do que de costume naquele dia. Meu cansaço era sobrepujado por uma vibração inquietante que vinha de dentro de mim. Era como se eu me sentisse mais vivo do que costumava me sentir. Cada célula do meu corpo parecia cheia de uma sensação vivificante e vibrava sem sutileza como se quisesse contar a todo mundo da sua importância. As luzes dos postes no caminho pareciam querer desmentir aquele sentimento vivaz de alegria exuberante. Eram luzes bruxuleantes, tão fracas que se juntando ao lusco-fusco dos carros davam uma impressão de monotonia extrema. Cada luz lamentava um canto da rua, sussurrava um canto triste e fazia sombra nas árvores que já pareciam nessa hora, seres de outro mundo num sonho amedontrador. Eu me inquietava, como que incomodado pelo mundo não partilhar daquelas coisas que pululavam do meu interior e queriam ser ouvidas. Passei pela frente daquela igreja, como o fazia sempre. Nunca me lembro de que religião ela é, só sei que não é católica, porque desse tipo eu fui obrigado a freqüentar quando pequeno e sei como é. Fiquei observando aquele grupo de jovens em volta do violão que era tocado por um homem com ar bonachão. Dois namorados escondiam-se atrás de um pilar, de onde cuidavam para que ninguém visse seus ardentes beijos. Meu olhar quando os vi foi de um desprezo calculado, exatamente dessa mesma forma, eu olhava para o grupo que cantarolava as canções religiosas. Sentia-me superior aquelas alegrias pueris, tudo aquilo me parecia frivolidade sem razão e por isso mesmo inútil. Por alguns instantes, pensei que pudesse ser inveja minha, porque nunca tinha estado naquelas situações, todavia, lembrei-me de quando namorava e das festas que ia e as lembranças não me agradavam e não me fizeram sorrir de satisfação. Eu parecia mais frio aquele dia, mais do que nunca. Não lembrava de alguma vez antes ter olhado as coisas e as pessoas de uma maneira mais distante e calculista que aquela. Passei a pensar que seres humanos nada mais eram do que animais que andavam sobre duas patas e que se movimentavam sem direção devastando o planeta.
            Foi na esquina seguinte que cruzei com um conhecido. Meu ar alienado, mas de certa forma plácido e feliz o impressionou um pouco. Ele esperava de mim outro estado de espírito e vinha preparado para me dar as condolências.
            – Eu já soube do ocorrido, Beto! Sinto muito! Você deve...
            Eu, sinceramente, não estava com a menor vontade de escutar aquelas palavras que vinham sendo repetidas periodicamente naquelas duas últimas semanas, depois do ocorrido, cada vez que eu me encontrava com algum parente ou amigo. Não me importava nem um pouco quem as dizia ou porque as dizia, elas já não serviam, na verdade não serviram nem no primeiro minuto que as ouvi pela primeira vez. Por isso, logo cortei o individuo dizendo:
            – Não se preocupe! Estou ótimo! Não me leve a mal, preciso ir andando!
            Ele me olhou primeiramente espantado e logo com um olhar reprovador, baixou um pouco a sobrancelha esquerda num ar de dúvida e logo em seguida tomou um ar de preponderante indignação. Não me interessava, com certeza, naquele momento, por seus julgamentos e estados de espírito e sem cerimônia lhe dei as costas e segui caminho rua abaixo passando pelas árvores frondosas que escureciam ainda mais o caminho de volta.
            Ainda tive tempo para mais algumas divagações quando lembrei de olhar para cima e o céu lotado de estrelas me agraciava com aquela alegria desmedida que se tem ao ver algo do qual se gosta realmente. E as estrelas sempre me agradaram, sempre fascinaram meu espírito aventureiro, desafiaram minha capacidade de interpretação e também, quem diria, o meu senso de direção.
            Minha casa já estava perto quando aquela sensação de estranheza e culpa começou a ressurgir em minha mente. Não, não era culpa por ter feito algo de mau, era culpa por não estar sentindo o que achava que deveria estar sentindo. Nos julgamos descuidadamente o tempo todo e de forma não muito prática, porque não calculamos o que nossos julgamentos podem trazer como conseqüências graves a nossa alma. Às vezes, o que começa com uma simples culpinha se avoluma de tal maneira que vira chaga e monstro devorador da consciência, nos enchendo de medos e de atitudes infantis. Me perguntava o porquê daquela felicidade absurda perante uma situação que exigia luto e cautela para evitar o enlouquecimento. Perder alguém tão querido era sempre motivo para que todos ficassem por muito tempo sorumbáticos e sensíveis. Uma daquelas fases em que se chora o tempo todo e em que se está sempre querendo um abraço e um ombro amigo. Incrivelmente, as coisas que eu menos queria naquele momento eram companhia, compaixão e conversa sobre coisas sentimentais. De repente, eu era todo eu. De uma forma egoisticamente brilhante, eu me sentia. Entretanto, a controvérsia dentro desse sentimento de absoluto ser era aquela sensação de que eu não deveria estar sentindo isso e sim que deveria estar desesperado. Minha mente me mandava mensagens o tempo todo, querendo me induzir a ficar chateado e indisposto, esta era a atitude correta a se tomar diante dos acontecimentos. Era preciso que corressem lágrimas e que eu fechasse a cara por um tempo mais ou menos longo, só assim os outros poderiam ter uma idéia da intensidade dos meus sentimentos pela falecida. E aquela sensação de culpa extremada por não estar mal pela morte da minha esposa ia crescendo dentro de mim e se avolumando. E crescendo e criando vida própria. Tornava-se forte e como uma bolha quase a ponto de explodir, virava uma dor no peito intolerável, querendo gritar aturdida. Você está errado! Você está errado! Você é mau!É mau! Gritava ela e me sacudia por dentro. Chacoalhava o cérebro e esmagava cada fibra de vibração de alegria que desejava surgir.
 Quando ia colocar a chave na porta de casa percebi que a mão tremia sem parar. A porta escura abriu-se rangendo. Eu procurava a luz, mas invariavelmente ela se queimou assim que tentei acendê-la. A luz do poste da rua permeava a sala através da porta, levemente torneava minha sombra enevoada desenhada no chão. Fui me embrenhando na escuridão da casa. Meus olhos não percebiam direito as formas em meio ao escuro. Todos os meus objetos tão conhecidos pareciam estranhos. Os que eu podia ver estavam com cores muito escuras, tinham o aspecto de penetrar em outro mundo e sorver uns goles lúgubres me lembrando a insensatez de minha esposa quando ainda por entre nós andava. Tateava incessantemente, contudo, logo até a escuridão começou a me agradar, novamente, aquela sensação de alegria enlouquecida. Uma doença, pensei, só pode ser. Estou doente, esta alegria insana que me faz querer dançar pela casa na escuridão não pode ser normal. E havia sombras dançando pela casa, eu sentia os movimentos na penumbra, eu via o escuro se mexendo numa dança vampiresca, sedutora. Eu suava frio e no meu pescoço senti o sopro cálido de um hálito suave. Era quente e penetrante, me aqueceu por inteiro. Era uma espécie de chama que queimava por dentro, foi descendo do pescoço, passando pelo ombro enchendo meu peito (ardia muito), embrenhou por entre meu ventre e logo eu estava tomado por inteiro. Que sensação de enlevo febril era aquela. Meu corpo ardia e meu espírito se deliciava com isso, eu estava quase perdendo a consciência e não havia ninguém para socorrer-me na casa vazia. Cambaleei até o telefone, tateava, tateava e as sombras me acompanhavam em círculos mórbidos. Tirei o fone do gancho, mas quando ia discar um número qualquer, percebi que estava completamente mudo. Novamente um sopro em meu pescoço e larguei o telefone de súbito. A adrenalina me deu um frio na espinha, o estrondo do telefone caindo ao chão nem foi registrado direito por meus ouvidos, tão preocupado eu estava em colocar a mão no meu pescoço e me perguntar o que a minha imaginação estava fazendo comigo. Foi esforço sobre humano que fiz para sair daquela arapuca que parecia se armar ao meu redor. Num solavanco endireitei-me e caminhei sofregamente até a cozinha, busquei a pia tateando, girei a torneira, procurei colocar água no rosto e em seguida, encher um copo para tomar algo. Agora me pergunto porque fiz tudo aquilo no escuro, acho que estava muito atordoado para pensar na luz. Quando atinei de liga-la, já sentia-me melhor, a água, líquido refrescante, acalmou meu interior como se apagasse um pouco daquele fogo febril, mas não por completo. Não por completo, com certeza!
Quando a luz penetrou o ambiente e incomodou sobremaneira meus olhos, senti que aquela sensação torturante não iria embora tão cedo. Tinha imaginado que eram somente imagens que uma pessoa exausta e excitada com acontecimentos e choques poderia criar numa casa vazia e que tudo aquilo logo iria embora assim como veio, rapidamente, sem deixar rastros. Porém, nem de perto o que eu imaginava aconteceria. A luz pareceu não fazer diferença e logo o efeito da água também se desfez. Na minha garganta se implantou uma espécie de sede estranha e as sombras que haviam sumido com a luz começaram a voltar lentamente pelos cantos da casa. Eu não conseguia olhá-las devidamente. Toda vez que meu olhar alcançava uma delas em cheio, ela sumia, desvanecia, tão rápido que eu não podia registrar sua forma completa em minhas retinas. Tudo ficava sempre sendo somente a impressão que eu tinha de canto de olho, somente um olhar de soslaio. Para minha contrariedade, por mais que eu quisesse desmentir aquilo que via, no instante seguinte, via outra sombra que não me deixava mentir para mim mesmo que nada havia ali. E quando, então, eu queria constatar novamente com exatidão do que se tratava, as sombras fugiam mais rápidas que a luz e me deixavam em incertezas sem fim.
Confuso, adentrei meu quarto, atirei a colcha da cama no chão e joguei-me no colchão pensando que uma boa noite de sono curaria tudo e que meu trabalho alienado, no dia seguinte, não me daria tempo de me torturar mais. Fechei os olhos amaldiçoando àquelas horas de ócio que podiam atormentar tanto a mente de um homem pelo simples fato de estarem ali, dando-lhe a chance de pensar. E a mente arma tantas armadilhas ardilosas que, às vezes, eu preferiria não possuir uma. Não sei por quanto tempo fiquei ali amaldiçoando o mundo, me revirando de um lado para outro, arfando, bufando, praguejando até. Suspirei e respirei fundo, longamente. Me sentia sufocado, tudo sufocava, o ar, o quarto, a casa onde pareciam existir só coisas mortas.
Entrevi no escuro do quarto, o rosto dela, a memória daquela última vez em que ela me olhou parecia impregnar minha mente. Ela ali, deitada naquela cama, emagrecida, desfalecendo, com aquele sorriso que fazia força para estampar no rosto pálido. Os olhos transpassados por aquela névoa de tristeza que a doença lhe impingiu ainda guardavam a lucidez dos velhos tempos, mas de longe se via que ela em vão tentava ocultar a intensa dor corporal que sentia. Não era para mim que ela precisava fingir, acho que para os outros parentes ou até para ela mesma é que era necessário. Tudo que se acredita menos do que é acaba se tornando menos sufocante. Era assim que ela via as coisas. E o seu temperamento antes da doença tão forte ficou reduzido aquilo, aquelas poucas palavras amáveis e doces que ela conseguia proferir com sofreguidão. Naquele momento, eu sentia toda a sua decadência. Eu sentia sim, por incrível que pareça, a falta das brigas. Eu queria que ela levantasse e gritasse como de costume, que tentasse impor sua opinião como sempre fazia. Eu queria que ela me demonstrasse aquela vivacidade ardorosa que em tudo me desobedecia e que me deixava a um só tempo furioso e admirado. Naquele instante, em que seu olhar era tão pálido e seu corpo tão fraco, eu só conseguia lembrar de quantas discussões ela tinha ganhado e de quantas vezes ela tinha batido a porta com força para dizer que tinha razão e o quanto aquilo me deixava chocado e ainda assim, desde cedo percebi que eu tinha um estranho prazer nesse choque.
Não, aquela doente calma e plácida como uma morta não era ela! Eu descria naquela imagem, desde que ela ficou entrevada naquela cama que eu desprezava aquele ser no qual ela se tornou. Aquela aura de bondade que a acometeu era tudo que me causava um escárnio sem igual. Tinha nojo de ver como ela acatava tudo que lhe diziam, tudo que eu lhe dizia. Como podia? Ela que nunca aceitava sem contestar uma única palavra minha, de repente, começou a achar ótimo tudo que vinha de mim. Aquilo era descaso de um Deus cruel e eu não queria alguém assim perto de mim. Peguei-me muitas vezes desejando que ela morresse logo, porque aquelas suas atitudes me sufocavam, me deixavam como o demônio a sentir que toda a maldade poderia brotar de algum canto escondido do meu ser. Era uma tal dor vê-la naquele estado que um dia a custo tive que me conter para não saltar sobre ela e sacudi-la com violência por querer que ela se levantasse e discutisse comigo, gritasse e me batesse talvez, não sei! Não sei bem o que queria, só queria que ela tivesse alguma reação violenta, algo que me comunicasse vida aos sentidos, que me deixasse novamente naquele choque ameaçador, pois era naquele ambiente que meus pensamentos se chacoalhavam e me vinham as melhores idéias. E agora, tudo era monótono, tudo era sem vida, tudo era vão e sem cor. Por tudo isso, quando ela morreu eu me senti liberto, quase como se isso fosse a única felicidade que ainda podia me advir dela. E eu continha a minha raiva ao ouvir os outros falarem no velório que ela tinha mudado muito antes de morrer, que tinha se arrependido de seus pecados, de ser uma pessoa tão irritadiça e tinha se tornado uma pessoa calma e boa, que por isso merecia o reino de Deus. Isso me deixava com os nervos a flor da pele. Insensatos! Imbecis! Não percebiam, não perceberam nunca enquanto estiveram ao lado dela que toda aquela aspereza com que falava, toda aquela luta que suscitava entre os que a ouviam era todo o encanto de sua personalidade, era toda a luz de seu espírito indomado. E aquele final de vida que teve foi como o apagar de toda aquela estranha força que a movia, que transformava o seu redor sem perdão. Foi tão ruim vê-la se desintegrar ante os preceitos alheios que eu preferia vê-la morta.
Abri os olhos como que num choque em meio à escuridão! Eu não suportava mais meu próprio estado. Comecei a não só ver novamente, mas também a ouvir as sombras no quarto. Elas davam voltas enlouquecidas, gemiam e sussurravam palavras incompreensíveis que me despertavam ânsias estranhas. Calculei que enlouquecia ou estava muito febril, pus a mão na testa e como a senti muito quente pensei que talvez algum remédio ajudaria. Pensamentos mais mórbidos começaram a surgir: e se eu morresse também... Não seria isso melhor? Que vida sem sentido eu levaria dali para frente? Enlouqueceria com todos estes devaneios e pesadelos que pareciam tão reais? E no final, não tinha mesmo nada de útil a esse mundo, cultivava sentimentos mesquinhos, nem sequer conseguia sofrer pelo que deveria sofrer e ao invés disso ficava entorpecendo meus sentidos e praguejando contra a divindade. Sentei-me de súbito e vi o quarto girar perante meus olhos. Tonto, cambaleei até a cozinha. Tonto, abri o armário. Infinitos pontinhos pretos e luminosos pairavam em frente a meu rosto, enquanto, eu tirava o remédio do vidro. Foram caindo muitas cápsulas em minha mão e como que uma força irresistível me impeliu a tomá-las todas. Fui colocando-as na boca e sentia que o fazia num gesto mecânico, gesto esse não controlado por mim. Só mais tarde percebi a ligação deste gesto com as sombras que estavam na casa. Bebi água, muita água e me joguei na cama novamente. Certo de que agora eu morreria, depois daquela dose extra de remédios que para falar a verdade, eu nem sabia quais eram. Pensar que morreria me deu uma sensação de alívio. Nunca havia pensado em mim mesmo como um suicida e a princípio a idéia me pareceu interessante e corajosa. Uma suavidade inquietante ia tomando conta dos meus membros, relaxando tudo como se eu estivesse derretendo aos poucos. Num repente, o desespero retornou, me dei conta de que morreria. Meu Deus!! Que horror!! Foi a mensagem que o cérebro me mostrou com força! E eu comecei a me exacerbar, a lutar contra aquele pensamento de morte. No fim, eu queria viver! Eu ainda tinha coisas para fazer, descobri que podia fazer planos. Quaisquer planos, não importava! Qualquer coisa era melhor que aquela sensação de que eu estava caminhando incessantemente para um abismo sem fundo e que minha consciência em breve deixaria de existir para nunca mais vir à tona. Um suicida, que covarde! E era assim que começava a me tratar dali por diante, como um covarde imbecil que não sabia o que fazer da vida. Lutava contra a idéia de levantar-me, primeiro, porque não sabia se conseguiria, segundo, porque tinha medo da força que me impelira a tomar os remédios daquela primeira vez. Acreditei que se me mexesse de novo, aquela força tomaria conta de mim completamente e me obrigaria a tomar mais remédios, mesmo que eu não quisesse. Eu não era mais dono de mim, pensei. Não estava mais certo de nada. As coisas ao redor já não tinham a existência que haviam tido anteriormente. Eram como fracas lâmpadas quase apagando e eu mesmo tinha uma existência sutil se desligando de tudo aos poucos.
Agonia ensandecida era tudo o que eu sentia. Me pareceu melhor a morte do que aquilo, enfim. Com esforço tentei mover-me para a borda da cama. Não consegui me deslocar mais do que poucos centímetros. Meu intuito era ir a cozinha e acabar com tudo de uma vez por todas. Uma faca serviria, faria bem o serviço. Só faltava esse passo, para quem já estava tão inconsciente mesmo, o resto seria fácil, a morte levaria. Entretanto, o corpo já não obedecia às ordens do cérebro e levava uma eternidade para que eu vencesse poucos milímetros de espaço.
Quando já desistia desse segundo intento e pensava em qualquer outro tipo de morte mais ligeira para aliviar aquele meu estado foi que vi para minha enorme surpresa uma pequena figura penetrar a porta do quarto. Com esforço e na ponta dos pés, a figurinha acendeu a luz e me olhou com seus grandes olhos azulados. Eu pisquei e busquei juntar todos os sentidos que me restavam para entender quem entrava naquele momento. O menininho de ar doce e gentil me olhava assustado e preocupado. Parecia mais um anjo enviado do céu com aqueles cabelos claros e a pele tão alva. No primeiro instante que o vi duvidei de sua existência com muita veemência. Segundos depois, reconheci em seu rostinho algo dos meus traços quando criança e isso acendeu nova chama de dúvida em minha alma. Ele não dizia nada. Só ficava ali parado, olhando para mim incessantemente. Olhei-o com mais atenção, quis passar no meu olhar que estava bem, que ele não precisava se preocupar que se precisasse de mim eu estaria ali. Queria dizer que sempre estaria ali para ele. Estranho! Agora me vinha aquela certeza absurda de que sempre estaria ali para cuidar dele, eu teria prometido isso se conseguisse abrir a boca para falar. E apesar disso, eu sabia que seria uma promessa falsa, afinal, eu estava à beira da morte. Minha vida poderia não passar do segundo seguinte, mas aquela pequena presença pareceu acender em mim uma chama de esperança, algo familiar, um não sei quê esquecido de que eu precisava desesperadamente me lembrar. Eu precisava cuidar daquela criança, era isso, ela precisava de mim, dependia de mim. Eu precisava viver por causa disso. Não podia me deixar morrer. E foi assim que lutei com todas as forças para que toda aquela loucura não me fizesse sucumbir no abismo sem fim do inconsciente.
            Amanheceu e o despertador tocou como de costume as 6:30. Levantei-me, lavei o rosto e tudo parecia normal. Todos os objetos estavam em seus devidos lugares e a casa clara e calma banhada pela luz do amanhecer trazia tranqüilidade. Lavei novamente o rosto e me olhei no fundo dos olhos que refletidos no espelho pareciam reais. Eles estavam límpidos, nem um resquício daquela noite bárbara havia sobrado. Teria sido tudo um sonho? “Será que eu bebi ontem depois do trabalho?” Pensei comigo... Não sei mais... As lembranças estavam tão confusas, é como se eu não entendesse mais nada. Ao mesmo tempo as sensações que traziam as recordações da noite anterior eram tão nítidas... Olhei meu reflexo mais uma vez para ter certeza de que estava ali e ele continuava a me mostrar um homem são de rosto lavado...


Andréia Cristina Saffier

2003