sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O conto do rato e da formiga na pós-modernidade tardia

 
 
Um rato e uma formiga da atualidade estavam em frente a seus computadores conversando pela internet. O assunto girava em torno da crise mundial pós-guerra do Iraque. O rato era muito entendido de política e, por ser bem mais velho que a formiga, tentava explicar a ela todas as implicações históricas que envolviam os Estados Unidos em questões internacionais. A formiga, na verdade, era meiga e avoada, mal sabia o que se passava pelo mundo à sua volta. Não gostava de ler jornais e de nada que desse notícias ruins. Preferia viver no seu mundinho poético e feliz. Pois é, ela escrevia belas poesias. O senhor rato, por sua vez, havia feito duas faculdades, uma de direito e a outra de arquitetura. Fez doutorado na Sorbonne dos ratos e era presidente de um clube de ficção cientifica. Era o membro mais velho da Academia de Letras dos Ratos Anônimos. A formiga, enquanto escrevia suas perguntas para o rato, tentava criar um poema que falasse sobre a sua sensação alada das coisas. Uma mistura da conturbação mental que a correria consumista pós-moderna a fazia sentir. O senhor rato lhe falava sobre a inevitabilidade de uma terceira guerra mundial muito próxima e de um fim do mundo ainda mais próximo e inevitável. Falava da sensação de insasiedade e ansiedade gerada pela mídia da atualidade. E o papel que a mídia teve veiculando a última guerra para o mundo, como se fosse um filme ficcional, o qual ela deliberadamente podia escolher quem seriam os mocinhos e os bandidos. Falava do poder das imagens e da palavra...
            A mocinha tinha dificuldades de apertar nas teclas, afinal, sendo formiga, não tinha muita força nas patinhas e resolvia esse grave problema pulando de tecla em tecla até conseguir encadear os pensamentos. O senhor, por sua vez, era bem mais rápido, com suas patas treinadas, escrevia textos com sapiência em poucos minutos. Assim, se percebia claramente que os textos do rato eram maiores e mais ligeiramente chegavam à formiga. Esta entre devaneios e calmarias, ia seguindo seu rumo poética e delirantemente, contudo, contemporaneamente, o que estragava a pura poesia arcadista... O romantismo era enterrado, pois a este ela sobrepunha toques dadaístas e parnasianos, sem falar quando o rato lhe inspirava idéias do naturalismo/realismo, incitando-a a achar que toda aquela crise pérfida era culpa do meio. Ou no mínimo destes cientistas que terminaram de mapear o genoma humano. Ele contava vitória dizendo que logo que eles decifrassem tudo que era necessário sobre os tais genes que o compõe, encontrariam, enfim, a explicação para todos esses distúrbios humanos que o tal Freud quis explicar com teorias vãs. E enterrariam qualquer possibilidade de existir nova poética humana.
            Tal coisa a formiga não poderia aceitar com naturalidade. Afinal, ela que fazia a faculdade de Letras e que amava os clássicos gregos, não poderia nunca se distanciar das epopéias, tragédias e comédias, tais quais eram descritas por Aristóteles. Ela era jovem e pulsava em sonhos de querer construir um mundo novo em cima daqueles ideais filosóficos antigos. O rato já era mais pessimista, ou realista como ele gostava de salientar. Costumava dizer que no mundo sempre imperara a lei do mais forte e que isso não mudaria jamais. Não importava quanto os fracos pudessem sonhar com algo diferente, a verdade é que quem o poder tivesse, o utilizaria para esmaga-los a seu bel-prazer. A formiga resistia a tal pensamento pragmático que lhe tolhia as utopias como uma avalanche natural, cataclisma que ela, em nome dos fracos e amigos do cristianismo, queria evitar. Tentava em vão formular argumentos com base em fatos empíricos, enquanto o rato rebatia um a um com a água gélida de uma lógica formada por um pensamento ainda mais empirista e concreto, a seu ver.
            Foi de repente que o rato ouviu o estrondo na janela. Barulho ensurdecedor aquele, até parece que o fim do mundo chegou e está formulando uma guerra no ferro-velho aqui a meu lado, pensou ele. Instintivamente, como raramente agiu em sua vida, ele olhou para a janela. Nela criatura estranha se encontrava. Tinha os pêlos ouriçados, olhos famintos, corpo arquejado, quase acuado, atitude entre opressiva e ansiosa. O rato paralisado tentava ler os pensamentos que passavam naqueles olhos de fera, onde um fogo de crueldade vivia. O bicho estava todo desgrenhado, sujo e babava, o rato teve asco e o nojo foi aumentando à medida que a criatura fazia menção de descer da janela e se aproximar. Contudo, o bicho estancou, como que paralisado pelo olhar do rato. E por muito tempo os dois ficaram naquela ansiosa espera. No ar pairava a tensão. Nas mentes a confusão, o dilema: o que poderá acontecer? O rato petrificara de medo, cada vez via mais pensamentos mórbidos no olhar da fera que cuidava cada milímetro de seu corpo, como se já saboreasse o gosto de sua carne magra. Queria gritar, mas a fala não saía, até a respiração já estava trancada há tempos. Ele já não sentia os músculos, estavam todos retesados. As células já não recebiam o oxigênio necessário. E as suas escolhas estavam entre o desmaio antes da morte e o desmaio depois desta. Nessa hora, ele começou a pensar em sua vida miserável, em quanto tempo passou pensando que viveria demais e que não era necessário ter tanto contato com os amigos, pessoas tão enfadonhas e chatas que sabiam tão pouco para ter uma conversa decente com ele. Percebeu que sentia falta do carinho que eles poderiam ter lhe dado, afinal, sempre que o convidavam para algo, estava ocupado demais, baixando coisas pela internet ou estudando em seus velhos livros as fórmulas da vida. Nesses segundos antes dos desastres, o espírito por toda a vida passa os olhos internos e a tudo julga com severidade. Assim fez o rato ao lembrar que não acreditava em vida após a morte e nem naquele Deus onisciente que a formiga tantas vezes quis lhe demonstrar que pelo bom senso existia. Lembrou de quantas vezes ela lhe falou sobre vidas passadas e existências futuras, mas que a tudo ele refutou com um sorriso irônico nos lábios de quem sabe mais e a tudo entende melhor. Entretanto, não fora mau nessa vida, nem se negara a ajudar aqueles que dele precisaram, só não fora tão agradecido a ponto de ser mais do que apenas cortês. Mas dele nunca houve grandes queixas, assim como nunca ninguém esperou dele grandes feitos, e era, por isso, que se sentia derrotado por aquele pessimismo poderoso. Tinha uma certa inveja da família de Freud e da ignorância de seus próprios amigos. “De que vale a verdade se nela podemos nos afogar e com ela não podemos ter uma vida digna?”, assim se perguntava o pobre rato condenado. Talvez fosse melhor ter passado a vida toda acreditando numa feliz mentira. Na realidade, pela primeira vez na vida ele já não estava mais certo de a verdade estar realmente do lado dele. Por que aquela morte tão estúpida que ele já adivinhava que lhe seria guardada? Seria ela mesmo merecida?
            A formiga do outro lado da linha telefônica ignorava completamente a cena dantesca que acontecia na casa do rato. Começou a estranhar a demora da resposta muito tempo depois, porque estava ainda absorta na produção de uma poesia que deveria convencer o rato a ter esperança de que o fim do mundo seria adiado por aquele Deus no qual ele não acreditava. Tarefa difícil a dela!
            O monstro não parava um só minuto de fitar o rato atormentado. Dos olhos da criatura uma lágrima de fome surgiu. Quem poderia crer no que se passava? Em segundos, o rato percebeu que o menino faminto dele se apossava e em pouco tempo sua vida sem sentido terminava. O menino com olhar cansado se encolheu num canto daquele lugar tão limpo que contrastava com a sujeira que ele trazia em si. Sem entender por que tinha de passar fome ou por que devorar alguém poderia ser um erro ele deitou e dormiu, mas não pôde sonhar, nunca pôde.
            Na tela do computador abandonado e só, pairava um texto deixado por alguém que esperava que a mensagem fosse lida por um grande amigo. Uma pequena mensagem ficava na tela para sempre à espera... A tela de descanso do computador ficou negra e a sala esquecida no tempo e na escuridão.

Andréia Cristina Saffier

0 comentários:

Postar um comentário